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A arte GANDHARA

GANDHARA: UM ENCONTRO DE CULTURAS

Carmen Lícia Palazzo.

Na região dos atuais Afeganistão e Paquistão foram descobertos os testemunhos materiais dos mais antigos e bem-sucedidos encontros entre a arte do Ocidente e a do Oriente — as chamadas esculturas de Gandhara. Por Gandhara entende-se uma antiga província na Ásia Central que, no século IV a.C., fez parte do território conquistado por Alexandre após violentas batalhas contra os persas. Após a morte do macedônio, o império foi dividido entre seus generais e:

“Os reinos helenísticos que surgiram após a morte de Alexandre o Grande em 323 a.C. começaram a aumentar o comércio entre Oriente e Ocidente. Frutas secas da Palestina, estanho da Grã-Bretanha e prata da Espanha fluíam para os novos reinos orientais.”[1]

Não apenas o comércio foi estimulado mas verdadeiras colônias gregas se estabeleceram na região. Na margem do rio Oxus, atual Amu Darya, foi fundada, na Antiguidade, Aï Khanoum, cujo ginásio, templo e pisos de mosaico fizeram dela uma verdadeira cidade helênica. Impressionante descoberta arqueológica, foi infelizmente destruída no decorrer da guerra dentre o Afeganistão e a então URSS.[2]

Com a expansão dos Kushan, que no século II da era atual já haviam conquistado o remanescente dos reinos gregos pós-alexandrinos na Ásia Central e no norte da Índia, o comércio continuou florescendo. Kanisha, que reinou entre os anos de 129 e 132, incentivou a produção artística de caráter budista mas exercendo uma tolerância religiosa que permitiu o culto de deuses gregos, iranianos e indianos. Favoreceu, portanto, um alto grau de sincretismo que permeou toda a cultura da região.

A cronologia que tem sido aceita pelos estudiosos para a análise da Rota da Seda, enfatiza os séculos I e II como um marco importante para o início de uma circulação mais densa de mercadorias. Trata-se de um período de significativas trocas culturais que coincide não apenas com o desenvolvimento do comércio pelos Sogdianos e com a chegada do budismo na China mas também com o apogeu do império Kushan. Trata-se também do início de um frutífero intercâmbio artístico que legará à Ásia algumas de suas mais belas obras.

A própria história do budismo está indissoluvelmente ligada à da Rota da Seda e uma das conseqüências da aproximação entre mundo greco-romano e o asiático na região de Gandhara foi a adoção da figura humana na representação de Buda. Nos primeiros séculos de difusão dos ensinamentos de Sidarta Gautama o mesmo era evocado através de imagens de pegadas, de um trono vazio, de um dossel ou da roda do dharma, evitando-se todo e qualquer apelo ao que pudesse ser entendido como objeto de culto. Porém, com a maior difusão do budismo, que no século II já se expandira através dos muitos caminhos de mercadores, surgem as primeiras imagens e com elas uma forte influência greco-romana.

Não se conhece exatamente a trajetória daqueles que teriam sido os escultores da região de Gandhara durante o império Kushan, onde foram realizadas as primeiras esculturas de Budas e de Bohdisattvas com traços helênicos e com drapejados em vestimentas muito semelhantes aos encontrados na Grécia e em Roma. Há também uma discussão entre os especialistas sobre os motivos que possam ter levado a uma significativa mudança nas mentalidades para que a representação da figura humana passasse a ser aceita e, desde então, largamente difundida entre os budistas. Sem dúvida o intercâmbio que se processava ao longo da Rota da Seda teve sua parcela de influência na adoção de imagens e no seu uso como objetos de culto, no panteão budista. As anteriores conquistas de Alexandre, de certa forma, também abriram caminho para aproximar o mundo mediterrâneo e adriático da Ásia Central. Assim, a interpenetração não apenas de estilos mas também de práticas produziu alterações importantes que marcaram novas formas de religiosidade.

A Sackler Gallery, da Smithsonian Institution, em Washington, D.C., possui, no seu acervo, uma esplêndida cabeça de Bodhisattva em estuque, de 53 cm, datada aproximadamente dos séculos IV ou V, da área de Gandhara (ver Figura 1). Observando as feições do personagem e principalmente a maneira como foram esculpidos os cabelos cacheados, evidenciam-se elementos que o distinguem das imagens tipicamente asiáticas. À exceção dos olhos amendoados, todo o rosto evoca um modelo grego ou romano.

Figura 1: Cabeça de Bodhisattva Gandhara[3]

Sherman E. Lee, especialista em arte oriental, referindo-se ao uso do estuque para as esculturas, escreve:

Sucumbe-se ao charme e à virtuosidade técnica destas imagens plásticas.  A produção de esculturas em pedra em Gandhara tende a acabar até o século III ou IV, e o trabalho subseqüente tende a ser executado em estuque, quando o gênio indiano para as formas plásticas e fluidas se reafirma.[4]

Conforme nos referimos anteriormente, outra característica da arte Gandhara é a semelhança das vestimentas de alguns personagens tanto com os panos gregos quanto com as togas romanas. O Museu de Artes Asiáticas Guimet, de Paris, possui em sua coleção algumas obras muito representativas deste estilo. Em uma escultura denominada “Bodhisattva em pé”, de 120 cm de altura, realizada entre os séculos I e III e encontrada no sítio arqueológico de Shahbaz-Garhi, é bastante clara a influência grega na veste fartamente drapejada.[5]

São muitos os exemplos passíveis de análise tendo como objetivo detectar os aportes da Grécia e de Roma na arte budista, principalmente em obras do período compreendido entre os séculos I e V na Ásia Central. Mas, como sempre ocorre em se tratando de manifestações artísticas, as influências não se esgotam em um período determinado e nem se circunscrevem a uma única região.

Os modelos migram para outras áreas e outras épocas, e vão se somando a novas criações que acumulam conteúdos e formas passadas, reinterpretando-os e transformando-os. Na arte oriental, e especialmente na budista, que cobre uma vasta extensão geográfica e tem a duração de muitos séculos, é rica a incorporação de influências externas e a elaboração e reconstrução de sentidos.


[1] PRATT, Alexandra. “The Silk Route.” History Magazine. Toronto: August/September 2003, 4 (6), p. 23.

[2] Ver, para maiores informações, BOPEARACHCHI, Osmund.. De l’Indus à l’Oxus: Archéologie de l’Asie Centrale. Paris: Lattès, 2003.

[3] Peça do acervo da Arthur M. Sackler Gallery, Afeganistão, em torno de 300-400. Referência S1987.951. (Foto minha).

[4]  LEE, Sherman E. A History of Far Eastern Art. New Jersey: Prentice Hall Inc., 1994, p. 108.

[5] Para visualizar a imagem da referida escultura, acessar a página do Museu Guimet  www.museeguimet.fr e buscar Bodhisattva débout.

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Publicado por Carmen Licia Palazzo

Sou historiadora, viajante e escritora. Tenho diversos livros e artigos publicados e minhas pesquisas relacionam-se com História da Ásia, Rota da Seda, com as atividades dos jesuítas na China entre os séculos XVI e XVIII e com os encontros entre culturas distintas. Tenho dado aulas e ministrado palestras sobre esses temas e também sobre Al Andalus. Neste blog vou postando alguns dos meus textos, fotos e também outros artigos ou referências principalmente relacionados com relatos de viajantes e visões ocidentais sobre o Oriente.

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